Ainda pagamos pelos escravos

O último livro do Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa, O Sonho do Celta, aborda a história do irlandês Roger Casement, que foi cônsul britânico e viajou pela África e América do Sul (Peru, Colômbia e Brasil) nos anos 1900. O Sr. Casement presenciou atrocidades mil contra negros africanos e índios sul americanos, que eram obrigados a extrair ouro no Congo, ou borracha na Amazônia, e vender a preço abaixo do que a dignidade humana permite. Isso quando o pagamento era apenas manter sua família viva, sem estupros, mutilações ou escravidão (como se essas ações não configurassem escravidão).

Os erros encontrados ultrapassavam as atrocidades físicas e chegavam ao golpe do peso, onde a balança era sempre adulterada para enganar os negros e índios, ao sequestro de familiares para garantir a produção e a tortura psicológica como forma de opressão, principalmente ao expor os habitantes locais a condições sub humanas de sobrivivência.

O Sr. Casement presenciou atos de escravidão na Amazônia brasileira 20 anos após a abolição dos escravos, em uma terra que existia apenas no papel e em mapas imprecisos. Hoje temos mapas precisos mas suponho que as terras do extremo norte e noroeste do nosso país continuem esquecidas. Vale lembrar que o Piauí é responsável por 0,5% do nosso PIB.

Toda a produção de ouro do Congo era mantida por empresas inglesas, que também eram sócias da extração de borracha da Amazônia. É claro que elas eram levadas para a Europa e vendidas com lucros absurdos aos nobres e a classe média emergente, em uma sociedade que se preparava para o primeiro boom de crescimento industrial, que se deu antes da 1a. Guerra Mundial.

Passados 100 anos podemos assegurar que não passamos mais por isso. Estamos em um mundo mais informado, consciente, conectado. A classe média atual, seja qual for seu país, sabe se o produto que consome faz bem para a saúde, se a empresa que o produz tem boa reputação e, entrando na onda do meio ambiente, se ela tem responsabilidade sócio-ambiental. Errado.

Os maus exemplos não param de surgir. A Nike passou décadas tentando se livrar de denúncias fundamentadas sobre trabalho escravo e uso de produtos tóxicos na fabricação de seus tênis (veja aqui). A Zara usa trabalho escravo no Brasil e em outras partes do mundo e se recusa a fazer acordo de ajuste de conduta com o Ministério do Trabalho no nosso país (veja aqui). A Apple fabrica seus iPods, iPhones e iPads em fábricas que tratam mal e pagam salários irrisórios para seus funcionários (veja aqui). E o Congo, que esteve na rota do Sr. Casement, volta ao noticiário por entrar novamente na rota da crueldade.

Em recente reportagem, o The New York Times publicou relatório da ONG Global Witness, que afirma que minérios raros que são utilizados na fabricação de iPhones e outros equipamentos com telas especiais, são extraídos no Congo por empresas de fachada, que são mantidas por rebeldes que usam o dinheiro para comprar armas e oprimir a população (veja aqui). Mais uma vez uma maioria é tratada como escravos, enquanto uma minora controla e oprime, uma minoria ainda menor compra a matéria prima e a transforma em produtos que são comprados por milhões de consumidores, que pagam fortunas que compõe o lucros dessa pequena minoria.

Aparentemente os fabricantes fecham os olhos para essas atrocidades (suspeito que devem bloquear tanto o sol quanto minha filha de 2 anos, quando cobre seus olhos com as mãos). Aparentemente o consumidor está pouco ligando para o que acontece onde ele não pode ver. Enquanto lutamos para comprar produtos socialmente responsáveis a preços justos, os fabricantes exploram a base da pirâmide da mesma maneira que faziam em 1900.

Qual é a nossa real responsabilidade nisso? Não comprar ou pressionar os governantes para uma regra mundial de produção e comércio responsável? A Rio+20 está batendo em nossas portas para fazer mais fumaça do que ações verdadeiras?

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2 comentários sobre “Ainda pagamos pelos escravos

    1. Denis Drago

      Já estou no grupo! E não deixe de assinar o blog para passar a receber as atualizações no seu e-mail.
      Beijos,
      Denis Drago

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